domingo, 21 de fevereiro de 2010

Azofra-Santo Domingo de La Calzada I

26/04/09...o dia mais tenso do Caminho.

Os albergues fecham às oito horas da manhã para limpeza...todo mundo tem que sair.

Você só pode dormir mais de uma noite no mesmo local  se estiver doente...verdadeiramente impossibilitado de seguir em frente...normas da Associação dos Peregrinos.

Alguns já haviam saído...chovia igual à véspera...como de rotina dei uma olhada no perfil do trecho do dia...o papel estava amarrotado como eu...uma boa subida até Cirueña...uma descida e chegaria ao meu destino do dia.



Achei que dava para ir...três amigos franceses vestiam suas capas..."Au revoir brésilienne"...me disseram gesticulando.
Havia dormido bem...sentia-me disposta...meu corpo estava aquecido pelo "chocolate caliente, tostadas y mermelada de fresas"...a geléia de morangos estava divina!


A garoa era fina mas fria...olhei  à minha frente e vi os franceses de capa verde...não estava sozinha...tranquilizei-me.


Foi ficando pesado...já não era mais uma garoa...a água descia em jorros.
O vento balançava os pés de trigo...eles chegavam a deitar pedindo trégua.


Olhei para trás...não havia mais ninguém...só a chuva desabando...nenhum abrigo.  


Olhei para a frente...nada dos franceses...o vento balançava minhas mãos...fiz essa foto e guardei a câmera da melhor forma que pude...junto ao meu corpo...ela não podia molhar.


Eu subia o morro...a lama era lisa...escorregadia...grudava nas botas...caminhava parecendo um robô-elefante.

O barro ia crescendo em camadas na sola das botas e eu tinha que levantar cada vez mais as pernas para conseguir dar os passos...isso esgotava.

"Leila por que você não respeitou o primeiro instinto?"...havia pensado em não sair àquela hora...não ouvi aquela voz interior primária que todos temos...deveria ter compreendido o sensor atávico...mas agora já era.

Relâmpagos riscavam o alfabeto no céu e trovões faziam meus batimentos cardíacos mais rápidos...sob as árvores não era prudente ficar...sensação de medo e profunda solidão. 

Tomava uma surra inesquecível...a cabeça e o corpo curvavam...a água entrava por tudo...a capa batia nas pernas..."flapflapflapflap".

Comecei a sentir frio...avistei uma pequena marquise...era um clube de golfe...fiquei feliz...ia poder me esconder...mas quem seria louco de jogar golfe com um tempo daqueles?

Os três franceses estavam lá molhados como eu..."Froid...Avancé"...falavam com as mãos..."Frio"..."Vamos em frente"...dei sinal que continuassem...estava cansada...esperaria um pouco ali.

Foi o meu erro parar...estava ensopada...o corpo esfriava rapidamente...resolvi sair mesmo chovendo muito.

Agora havia granizo...eram como alfinetes picando meu rosto...as luvas estavam encharcadas...os bastões escorregavam.

Comecei a ficar preocupada...sentia muito frio...as pernas pesavam e minhas mãos enrijeciam...a face e os lábios endureciam..."Não posso parar mais"...à minha volta não havia nada...ninguém...umas casinhas parecendo abandonadas...nenhum carro ou trator.

"E se ficasse pior e tivessem que avisar minha família?"...eu não queria isso...era recomendado trazer junto ao corpo e na mochila um telefone para emergências. 

O esforço agora era imenso...andava lentamente...sem conseguir dar nem mais um passo...com lágrimas e chuva escorrendo pelo rosto olhei para cima..."Deus...me ajude".

Uma porta daquelas "casas abandonadas" abriu à minha esquerda e um senhor de cabelos brancos  puxou meu braço..."Peregrina entras...adelante mujer...estás quedandote rígida" .

A casa era quente e acolhedora...havia uma mesa com várias cadeiras diferentes umas das outras.

Recordo-me dele chamando alguém...mais dois senhores de cabelos brancos surgiram...puseram-me sentada...decididos e carinhosamente tiraram minhas luvas, capa, botas e meias...massagearam meu rosto, mãos e pés...um deles trouxe-me uma caneca de leite bem quente com bolachinhas.

"Yo soy Gregorio y tiengo 82 años, este es Luis con 81 años y este es Marcos con 80 años...somos hermanos y vivimos aqui HACE MUCHO TIEMPO". 

Melhorei aos poucos...passaram-se 30 ou 40 minutos talvez...Gregorio me ajudou com a capa...calcei as botas...como se conhecesse a disposição dos meus pertences ele abriu o zíper da mochila onde estavam minhas meias...calçou-as nas minhas mãos...olhou-me nos olhos...beijou minha testa e disse..."Vaya com Dios...no irá llover...camina solamente más 5 quilometros hoy"...quando abriu a porta inacreditavelmente estava sol...a chuva havia parado.

Agradeci e lhes disse que eram agora parte de minha vida...sorriram e fecharam a porta.

Dei uns dez passos e olhei para trás...novamente a sensação de local abandonado..."Gracias para todo lo siempre mis angeles!".
Hoje sei  que tive um princípio de hipotermia...minhas roupas eram inadequadas para o que passei...fui imprudente.

Disseram-me emocionadas depois...mãe e filha brasileiras que repetiam, nem me lembro mais quantas vezes, a caminhada..."São os mistérios do Caminho...você foi abençoada!".

Tenho certeza que sim. 

2 Comentários:

Anonymous carmen lygia disse...

nossa Leila.......essa foi a prova mesmo!!!!!
encontrar forças onde não há mais e anjos que surgem do abandono!
obra de Deus!
vou continuar, sua narração está linda, gracias
Carminha

9 de abril de 2011 às 19:25  
Blogger Leila Liz disse...

É isso aí mesmo Carminha...mistérios do caminho...anjos me ajudaram...e essa lembrança ainda hoje me deixa arrepiada e EXTREMAMENTE agradecida a ELE.
Beijo!

10 de abril de 2011 às 11:46  

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