sexta-feira, 23 de abril de 2010

Rabanal del Camino-El Acebo

10/05/09

O carioca que caminhou um pouco comigo não estava gostando de nada...reclamava da comida...dos espanhóis...dos preços...dos albergues..."peregrino precisa ter mais conforto...não imaginava que sofreria tantas privações Leila!".


No cruzamento do asfalto ligou para a esposa...iriam gastar seus euros em Paris...tentei demovê-lo da ideia...ali mesmo pegou carona...desistiu...não estava pronto para os "perrengues".


Segui em meio à forte neblina...mal se visualizavam os sinais para se chegar à vila templária.


O dia me preparava uma surpresa daquelas...sentia-me inquieta...sabia por onde teria que passar...esperava desde o Brasil por esse momento.


Deixei que o peregrino sumisse na íngreme subida...queria viver aquele momento sozinha...uma lenda dizia que Foncebadón...vila mais à frente era amaldiçoada.


Contavam-se muitas histórias...cães raivosos atacavam peregrinos e ovelhas indefesas...outra função dos bastões  era mantê-los distantes...segurei os meus com firmeza...silenciosamente pedi proteção a Deus.

Dizia-se que na Idade Média vários habitantes dessa vila foram presos dentro de uma igreja e queimados...vivos.


A cruz marcava o local onde isso aconteceu...muitos séculos atrás.


Não se ouvia ruído algum...o vento parecia haver parado...tudo abandonado...não estava sugestionada...a energia não era boa...sozinha não poderia sequer pensar em perder a lucidez...ainda mais ali.  


Olhei para trás...para o local onde o último a entrar na igreja olhou para os carrascos da Inquisição e disse que o lugar seria para sempre maldito...que nem vida nem nada de bom jamais vingaria ali.


Meu coração acelerou...respirar ficou mais difícil...altitude de 1400 metros...tensão...medo...congestão nasal...sudorese intensa.
Um cão marrom enorme...feio...manchado de laranja e cinza lambia calmamente suas partes íntimas...estava bem no meio do caminho... eu queria documentar o momento...talvez ele não me visse...gelei!


Ele levantou a cabeça...me analisou...mostrou os dentes e rosnou longamente...arrepiei inteirinha...até à nuca...só saiu um..."Hola! Que tal?".
Imediatamente ele se deitou dormindo...experiência inacreditável.


Hoje fico pensando porque teria "hablado" em espanhol...foi para que ele entendesse que  eu respeitava aquele local sagrado e de muito sofrimento...me deixou passar...segui arrepiada e feliz...ele havia percebido que minha missão era de paz.


Chegava ao ponto mais alto de todo o Caminho de Santiago...1504 metros de altitude...no meio da névoa consegui ver um monte enorme de pedras.


Era a  Cruce de Ferro...outro monumento emblemático...simples e pleno de significados...ali se deixavam pedidos...dores...gratidão...essa última muito mais presente na minha viagem pela vida.
  
Subi lá no alto...estava muito emocionada...deixei uma pedra brasileira embrulhada num papel com muitos nomes...alguns donos desses nomes nem sabiam disso...outros sim...talvez estejam até lendo esse relato.


Apesar da cerração era muito agradável a descida...outra emoção me aguardava mais embaixo.


Ouvi um sino batendo várias vezes...de longe vi nossa bandeira...propaganda do Caminho do Sol...peregrinação brasileira.


Além do alento dado pelo sino aos que ainda persistiam...Tomás...ermitão à minha direita...e seus parceiros nos acolhiam com café quentinho...em Manjarin.


O vale mostrava belezas impactantes...delicadas...eu estava acima das nuvens de neblina.


A sensação de plenitude era indescritível...em verde...rosa...amarelo...branco.


O silêncio e o espaço à minha volta estavam cheios da presença ausente de pessoas queridas...isso era muito forte no meu coração.


Enquanto subia pensava se o carioca se arrependeria um dia por ter trocado as pedras do Caminho de Santiago pela Avenue des Champs Elysées.


Provavelmente não...só seria possível percorrer o caminho quem estivesse mesmo disposto à interiorização...custasse o que custasse.


Dediquei todas as alegrias e dificuldades desse dia aos meus filhos...era dia das mães no Brasil...não consegui falar com eles...estava num local ermo.
  

Os joelhos doíam muito...fazia frio...chovia...estava exausta...parei em El Acebo.


Bati no primeiro refúgio da vila...tinha aquecedor...precisava muito do calor...fiquei ali.


Meu quarto era quente...uma jóia...de pedras...meu presente do dia das mães.


Lavei toda a roupa suja de barro...pendurei aonde deu...lá fora.

Fui comprar meu jantar...brindei sozinha...às mães peregrinas do Caminho...e às dos caminhos da vida!